20110228

Pausa para o Adeus

PAUSA
(Moacyr Scliar)

Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para o banheiro, fez a barba e lavou-se. Vestiu-se rapidamente e sem ruído. Estava na cozinha, preparando sanduíches, quando a mulher apareceu, bocejando:
- Vais sair de novo, Samuel?
Fez que sim com a cabeça. Embora jovem, tinha a fronte calva; mas as sobrancelhas eram espessas; a barba, embora recém-feita, deixava ainda no rosto uma sombra azulada. O conjunto era uma máscara escura.
- Todos os domingos tu sais cedo observou a mulher com azedume na voz.
- Temos muito trabalho no escritório – disse o marido, secamente.
Ela olhou os sanduíches:
- Por que não vens almoçar?
- Já te disse: muito trabalho. Não há tempo. Levo um lanche.
A mulher coçava a axila esquerda. Antes que voltasse a carga, Samuel pegou o chapéu:
- Volto de noite.
As ruas ainda estavam úmidas de cerração. Samuel tirou o carro da garagem. Guiava vagarosamente, ao longo do cais, olhando os guindastes, as barcaças atracadas.
Estacionou o carro numa travessa quieta. Com o pacote de
sanduíches debaixo do braço, caminhou apressadamente duas quadras.
Deteve-se ao chegar a um hotel pequeno e sujo. Olhou para os lados e entrou furtivamente. Bateu com as chaves do carro no balcão, acordando um homenzinho que dormia sentado numa poltrona rasgada. Era o gerente. Esfregando os olhos, pôs-se de pé.
- Ah! Seu Isidoro! Chegou mais cedo hoje. Friozinho bom este, não é? A gente...
- Estou com pressa, seu Raul! – atalhou Samuel.
- Está bem, não vou atrapalhar. O de sempre. – estendeu a chave.
Samuel subiu quatro lanços de uma escada vacilante. Ao chegar ao último andar, duas mulheres gordas, de chambre floreado, olharam-no com curiosidade.
- Aqui, meu bem! uma gritou e riu: um cacarejo curto.
Ofegante, Samuel entrou no quarto e fechou a porta a chave. Era um aposento pequeno: uma cama de casal, um guarda-roupa de pinho; a um canto, uma bacia cheia d'água, sobre um tripé. Samuel correu as cortinas esfarrapadas, tirou do bolso um despertador de viagem, deu corda e colocou-o na mesinha de cabeceira.
Puxou a colcha e examinou os lençóis com o cenho franzido; com um
suspiro, tirou o casaco e os sapatos, afrouxou a gravata. Sentado na cama comeu vorazmente quatro sanduíches. Limpou os dedos no papel de embrulho, deitou-se e fechou os olhos.
Dormir.
Em pouco dormia. Lá embaixo a cidade começava a mover-se: os automóveis buzinando, as jornaleiras gritando, os sons longínquos.
Um raio de sol filtrou-se pela cortina, estampou um círculo luminoso no chão carcomido.
Samuel dormia; sonhava. Nu, corria por uma planície imensa, perseguido por um índio montado a cavalo. No quarto abafado ressoava o galope. No planalto da testa, nas colinas do ventre, no vale entre as pernas, corriam. Samuel mexia-se e resmungava. Às duas e meia da tarde sentiu uma dor lancinante nas costas. Sentou-se na cama, os olhos esbugalhados: o índio acabava de trespassá-lo com a lança. Esvaindo-se em sangue, molhado de suor, Samuel tombou lentamente; ouviu o apito soturno de um vapor. Depois, silêncio.
Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para a bacia, lavou-se. Vestiu-se rapidamente e saiu.
Sentado numa poltrona, o gerente lia uma revista.
- Já vai, seu Isidoro?
- Já – disse Samuel, entregando a chave. Pagou, conferiu o troco em silêncio.
- Até domingo que vem, seu Isidoro – disse o gerente.
- Não sei se virei – respondeu Samuel, olhando pela porta; a noite caía.
- O senhor diz isto, mas volta sempre – observou o homem, rindo.
Samuel saiu.
Ao longo do cais guiava lentamente. Parou um instante, ficou olhando os guindastes recortados contra o céu avermelhado. Depois, seguiu. Para casa.


[Homenagem ao grande escritor e médico gaúcho
Moacyr Scliar, falecido ontem. Um brinde ao seu irreverente legado.]

20110224

PsiA

A psicodelia eclode feito vulcão na tua mente, mas nem sempre coloca-se "aceitável" fora dela.

20110223

Lh'ame


Corrompendo liames e afins.
(Me)tralhadas infinitas.

20110222

"Titãs - A Vida Até Parece Uma Festa"


"As filmagens começaram logo no início da década de 80, quando Branco Mello comprou uma câmera VHS para registrar tudo o que acontecia com os Titãs nos shows, estúdios, quartos de hotéis, aeroportos, ensaios, enfim, os bastidores do intenso convívio da banda. Por mais de duas décadas, Branco e seus companheiros captaram e arquivaram sons e imagens em vários formatos como VHS, Hi-8, Super-8 e Mini-DV.
Em 2002, Branco convidou o premiado diretor Oscar Rodrigues Alves para juntos dividirem o roteiro, a montagem e a direção do filme. Eles partiram das mais de 200 horas de material original organizado pela produtora Angela Figueiredo. De uma ampla pesquisa nas emissoras de TV, vieram os programas de auditório, videoclipes e entrevistas. A soma desse conteúdo revela personagens incríveis e momentos inesquecíveis: o início underground em São Paulo, o primeiro sucesso Sonífera Ilha, as prisões por envolvimento com drogas, o antológico show Cabeça Dinossauro, os bastidores das gravações do álbum Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas, o sucesso nos grandes festivais, as saídas de Arnaldo Antunes e Nando Reis, a morte trágica de Marcelo Fromer, as viagens pelo Brasil e o mundo.
O resultado é um documentário musical de longa-metragem que não apenas conta a história da banda, mas mostra a irreverência, a emoção, o bom humor e as aventuras dos Titãs desde os primórdios até hoje em dia. A história dos Titãs contada pelos próprios Titãs."

Fonte: www.titas.net


Segue um dos melhores momentos do documentário, aqui.

[Carinhosa e respeitosamente, desde criança eu os chamo "Tantãs".]

20110221

Rastro Lastro

Castelo de fina areia, cortina suja de estrelas.
Guarda-pó? Pra quê? Inútil porém-repente!
Resguarde-se aí mesmo, no poento porão.

20110217

Feeling

A violenta catarse aflora dos espíritos não-ordinários.
Sentir plena e profundamente é a lei.

20110216

Exposição Grito Rock 2011


Em sua primeira edição, a Exposição Virtual do Grito Rock traz trabalhos de 23 artistas brasileiros selecionados pelo Núcleo Poéticas Visuais do Circuito Fora do Eixo.
As obras serão exibidas durante o maior festival integrado da América do Sul, contando hoje com 132 cidades realizadoras e envolvendo 10 países da América Latina.
Confiram aqui o resultado da seleção no Brasil.

Fiquei muito satisfeita por figurar entre os escolhidos!
Agradeço a Deus!

Confiram tudo sobre o Grito Rock, aqui.

20110215

Projeto

- Amplo universo?
- Teu ser.
- Pequena plenitude?
- Único coração.

20110211

"Les Demoiselles de Rochefort"


Poesia, musicalidade e finesse.

Apresento-lhes "Les Demoiselles de Rochefort" (FRA, 1967), uma das maiores pérolas do cineasta Jacques Demy.

Brilhante romance musical: o cenário francês da época, as cores, a distinta arte - enfim, uma obra encantadora.

Eis a história de duas irmãs gêmeas que sonham com seus verdadeiros amores e com a realização artística em Paris. 

Delphine e Solange, respectivamente, são maravilhosamente interpretadas por Catherine Deneuve e Françoise Dorléac.

Delphine ensina ballet a crianças; Solange, música. Elas vivem em Rochefort, uma bela cidade litorânea, e sequer imaginariam, até então, que as presenças de um marinheiro e de um músico mudariam suas vidas para sempre.

Danielle Darrieux, Gene Kelly, George Chakiris, Grover Dale, Jacques Perrin e Michel Piccoli igualmente revelam todo o seu encantamento e brilhantismo ao espectador.

O filme tem a magistral trilha sonora composta por Michel Legrand. Já a coreografia foi ministrada pelo virtuoso Norman Maen. 

Esse é um longa-metragem digno de todos aqueles que apreciam uma boa e requintada película repleta de charme e mistério.

Aqui, a famosa "Chanson des Jumelles". Adorável!

20110207

Punho e Pulso

Mais vale um ensolarado quinhão de terra fértil do que um insulado coração que encerra-se inerte.

Irmã


Nem sempre as veias retumbam harmonicamente em nossos corações. (Quem nos dera!)
A verdade é que compartilhamos aquele ritmo que não ouvimos juntas.
Lembro-me, como se fosse sempre-hoje, de nossa cumplicidade.
A ti, Manuela, minha homenagem. SIM! Porque tu és meu "braço direito", mesmo sem sabê-lo!

A Fotografia Enquanto Instância Apocalíptica


Aqui apresento-lhes um texto que compus em Novembro de 2004.

Fotografia: ciclópico vício impregnado de um inconsciente medo da morte. Como extensão do olho humano, a câmera satisfaz-nos desejos de omnisciência e talvez seja o aparato mecânico que mais se aproxima do voyeurismo.
As imagens brotam com a instantânea perda das dimensões temporais, espaciais e existenciais. O fotógrafo e o espectador, sujeitos cuja essência é a imaginação, acrescentam a esses momentâneos registros um importante aspecto que lhes proporciona autonomia e in(di)visibilidade – o caráter subjetivo. A magia do invisível na fotografia vem à tona com a infinitude interpretativa de uma imagem. Entende-se, desta forma, que ela não constitui mero instrumento de frieza documentária, "congelante instantâneo". Muito mais que isso, agrega o modo particular de ver do autor (o que é o autor?) e do fruidor – daí a sua indivisibilidade como (id)entidade móvel. A fotografia é una em sua composição ao mostrar que "isto é tal (e foi)", mas não-estática quando submetida ao filtro de um ser-no-mundo.
Na imagem fotográfica reside o temor à efemeridade mundana e a consciência da implacável morte. O Homem encontrou uma maneira de "parar" o tempo e o espaço nesta representação de momento. O que se repete na imagem como algo registrado nunca mais se repetirá e está morto. Além de expressar a dimensão existencial do "imaterial" que não virá a acontecer novamente, a foto é também perecível em sua materialidade: papel e sais de prata.

Natimorta, amorfa em essência e inclassificável, a arte de fotografar reproduz imageticamente a dicotomia vida/morte e a dialética do ser/vir-a-ser (ou o que foi). A fotografia não se restringe à estética de suas imagens mecanicamente geradas; é tão complexa e angustiante quanto a existência humana.

Imagem: A primeira de minhas autofotografias através de uma Pinhole.

20110204

Arsenal

Expressão, Convulsão, Amor. Oito-noventa-graus.

(Haja Violência e Paixão, mes amis!)

20110201

Morte Simbólica

O vaidoso eremita, ao retomar o sentido do vir-a-ser, torna-se profeta e retorna à falaz indigência poética.
Além-existência.