20081112

Oscar Wilde

O ROUXINOL E A ROSA
_ Ela disse que dançaria comigo se eu lhe levasse rosas vermelhas – exclamou o Estudante – mas não vejo nenhuma rosa vermelha no jardim.
Por entre as folhas, do seu ninho, no carvalho, o Rouxinol o ouviu e, vendo-o, ficou admirado...
_ Não há nenhuma rosa vermelha no jardim! – repetiu o Estudante, com os lindos olhos cheios de lágrimas – Ah! Como depende a felicidade de pequeninas coisas! Já li tudo quanto os sábios escreveram. A Filosofia não tem segredos para mim e, contudo, a falta de uma rosa vermelha é a desgraça da minha vida.
_ E eis, afinal, um verdadeiro apaixonado! – disse o Rouxinol. Gorjeei-o noite após noite, sem conhecê-lo, no entanto; noite após noite falei dele às estrelas, e agora o vejo... O cabelo é negro como a flor do jacinto, e os lábios, vermelhos como a rosa que deseja; mas o amor pôs-lhe na face a palidez do marfim e o sofrimento marcou-lhe a fronte.
_ Amanhã à noite o Príncipe dará um baile, murmurou o Estudante, e a minha amada se encontrará entre os convidados. Se levar-lhe uma rosa vermelha, dançará comigo até a madrugada. Se levar-lhe uma rosa vermelha, hei de tê-la nos braços, sentir-lhe a cabeça no meu ombro e a sua mão presa à minha. Não há rosa vermelha em meu jardim... E ficarei só; ela apenas passará por mim... Passará por mim... E meu coração se despedaçará.
_ Eis, na verdade, um apaixonado... – pensou o Rouxinol – Do que eu canto, ele sofre. Aflige-o o que me alegra. Grande maravilha, na verdade, o Amar! Mais precioso que esmeraldas e mais caro que opalas finas. Pérolas e granada não podem comprá-lo, nem se oferece nos mercados. Mercadores não o vendem, nem o conferem em balanças a peso de ouro.
_ Os músicos da galeria – prosseguiu o Estudante – tocarão os seus instrumentos de corda e, ao som de harpas e violinos, minha amada dançará. Dançará tão leve, tão ágil, que seus pés mal tocarão o assoalho, e os cortesãos, com suas roupas de cores vivas, reunir-se-ão em torno dela. Mas comigo não bailará, porque não tenho uma rosa vermelha para dar-lhe... – e, atirando-se à relva, ocultou nas mãos o rosto e chorou.
_ Por que está chorando? – perguntou um pequeno lagarto ao passar por ele, correndo, de rabinho levantado.
_ É mesmo! Por que será? – Indagou uma borboleta que perseguia um raio de sol.
_ Por quê? – sussurrou uma linda margarida à sua vizinha.
_ Chora por causa de uma rosa vermelha
informou o Rouxinol.
_ Por causa de uma rosa vermelha?! – exclamaram – Que coisa ridícula!
E o lagarto, que era um tanto irônico, riu à vontade.
Mas o Rouxinol compreendeu a angústia do Estudante e, silencioso, no carvalho, pôs-se a meditar sobre o mistério do Amor.
Subitamente, abriu as asas pardas e voou.
Cortou, como uma sombra, a alameda; e como uma sombra, atravessou o jardim.
Ao centro do relvado, erguia-se uma roseira. Ele a viu. Voou para ela e pousou num galho.
_ Dá-me uma rosa vermelha – pediu – e eu cantarei para ti a minha mais bela canção!
_ Minhas rosas são brancas; tão brancas quanto a espuma do mar, mais brancas que a neve das montanhas. Procura minha irmã, a que enlaça o velho relógio-de-sol. Talvez te ceda o que desejas.
Então o Rouxinol voou para a roseira que enlaçava o velho relógio-de-sol.
_ Dá-me uma rosa vermelha – pediu – e eu te cantarei minha canção mais linda.
A roseira sacudiu-se levemente.
_ Minhas rosas são amarelas como a cabeleira dourada das sereias que repousam em tronos de âmbar, e mais amarelas que o trigo que cobre os campos antes da chegada de quem o vai ceifar. Procura a minha irmã, a que vive sob a janela do Estudante. Talvez te possa ajudar.
O Rouxinol então dirigiu o vôo para a roseira que crescia sob a janela do Estudante.
_ Dá-me uma rosa vermelha – pediu
e eu te cantarei minha canção mais linda.
A roseira sacudiu-se levemente.
_ Minhas rosas são vermelhas, tão vermelhas quanto os pés das pombas, mais vermelhas que os grandes leques de coral que oscilam nos abismos profundos do oceano. Contudo, o inverno regelou-me até as veias, a geada queimou-me os botões e a tempestade quebrou-me os galhos. Não darei rosas este ano.
_ Eu só quero uma rosa vermelha
repetiu o Rouxinol uma só rosa vermelha. Não haverá meio de obtê-la?
_ Há, respondeu a Roseira, mas o meio é tão terrível, que não ouso revelar-te.
_ Dize. Não tenho medo.
_ Se queres uma rosa vermelha, explicou a roseira, hás de fazê-la de música, ao luar; tingi-la com o sangue de teu coração. Tens de cantar para mim com o peito junto a um espinho. Cantarás toda a noite para mim e o espinho deve ferir teu coração e teu sangue de vida deve infiltrar-se em minhas veias e tornar-se meu.
_ A Morte é um preço exagerado para uma rosa vermelha – exclamou o Rouxinol – e a Vida é preciosa... É tão bom voar através da mata verde e contemplar o sol em seu esplendor dourado, e a lua em seu carro de pérola... O aroma do espinheiro é suave, e suaves são as campânulas ocultas no vale, e as urzes tremulantes na colina. Mas o Amor é melhor do que a Vida. E o que vale o coração de um pássaro comparado ao coração de um homem?
Abriu as asas pardas para o vôo e ergueu-se no ar. Passou pelo jardim como uma sombra e, como uma sombra, atravessou a alameda.
O Estudante estava deitado na relva, no mesmo ponto em que o deixara, com os lindos olhos inundados de lágrimas.
_ Rejubila-te! – gritou-lhe o Rouxinol – Rejubila-te! Terás a tua rosa vermelha. Vou fazê-la de música, ao luar. O sangue de meu coração a tingirá. Em conseqüência, só peço-te que sejas sempre verdadeiro amante, porque o Amor é mais sábio do que a Filosofia, embora sábia; mais poderoso que o poder, embora poderoso. Tem as asas da cor da chama e da cor da chama tem o corpo. Há doçura de mel em seus braços e seu hálito lembra o incenso.
O Estudante ergueu a cabeça e escutou. Nada pôde entender, porém, o que dizia o Rouxinol, pois sabia apenas o que está escrito nos livros.
Mas o Carvalho entendeu e ficou melancólico, porque amava muito o pássaro que construíra ninho em seus ramos.
_ Canta-me um derradeiro canto – segredou-lhe – sentir-me-ei tão só depois da tua partida.
Então o Rouxinol cantou para o Carvalho, e sua voz fazia lembrar a água a borbulhar de uma jarra de prata.
Quando o canto finalizou, o Estudante levantou-se, tirando do bolso um caderninho de notas e um lápis.
_ Tem classe, não se pode negar – disse consigo, atravessando a alameda
Mas terá sentimento? Não creio. É igual à maioria dos artistas. Só estilo, sinceridade nenhuma. Incapaz de sacrificar-se por outrem. Só pensa em cantar e bem sabemos o quanto a Arte é egoísta. No entanto, é forçoso confessar, possui maravilhosas notas na voz. Que pena não terem significação alguma, nem realizarem nada realmente bom!
Foi para o quarto, deitou-se e, pensando na amada, adormeceu.
Quando a lua refulgia no céu, o Rouxinol voou para a roseira e apoiou o peito contra o espinho. Cantou a noite inteira e o espinho mais e mais enterrou-se-lhe no peito, e o sangue de sua vida lentamente se escoou...
Primeiro descreveu o nascimento do amor no coração de um menino e uma menina; e, no mais alto galho da roseira, uma flor desabrochou, extraordinária, pétala por pétala, acompanhando um canto e outro canto. Era pálida, a princípio, qual a névoa que esconde o rio, pálida qual os pés da manhã e as asas da alvorada. Como sombra de rosa num espelho de prata, como sombra de rosa em água de lagoa era a rosa que apareceu no mais alto galho da roseira.
Mas a roseira pediu ao Rouxinol que se unisse mais ao espinho.
_ Mais ainda, Rouxinol, exigiu a roseira, senão o dia raia antes que eu acabe a rosa.
O Rouxinol então apertou ainda mais o espinho junto ao peito, e cada vez mais profundo lhe saía o canto porque ele cantava o nascer da paixão na alma do homem e da mulher.
E tênue nuance rosa nacarou as pétalas, igual ao rubor que invade a face do noivo quando beija a noiva nos lábios.
Mas o espinho não lhe alcançava ainda o coração e o coração da flor continuava branco – pois somente o coração de um Rouxinol pode avermelhar o coração de uma rosa.
_ Mais ainda, Rouxinol
clamou a roseira – não deixe raiar o dia antes que eu finalize a rosa.
E o Rouxinol, desesperado, calcou-se mais forte no espinho, e o espinho lhe feriu o coração, e uma punhalada de dor o traspassou.
Amarga, amarga lhe foi a angústia e cada vez mais fremente foi o canto, porque ele cantava o amor que a morte aperfeiçoa, o amor que não morre nem no túmulo.
E a rosa maravilhosa tornou-se purpurina como a rosa do céu oriental. Suas pétalas ficaram rubras e, vermelho como um rubi, seu coração.
Mas a voz do Rouxinol se foi enfraquecendo, as pequeninas asas começaram a estremecer, e uma névoa cobriu-lhe o olhar; o canto tornou-se débil e ele sentiu qualquer coisa apertar-lhe a garganta.
Então, arrancou do peito o derradeiro grito musical.
Ouviu-no a lua branca, esqueceu-se da Aurora e permaneceu no céu.
A rosa vermelha o ouviu e, trêmula de emoção, abriu-se à aragem fria da manhã.
Transportou-no o Eco à sua caverna purpurina, nos montes, despertando os pastores de seus sonhos. E ele os levou através dos caniços dos rios, e eles transmitiram sua mensagem ao mar.
_ Olha! Olha!
exclamou a roseira – A rosa está pronta, agora!
Ao meio-dia o Estudante abriu a janela e olhou.
_ Que sorte! – disse – Uma rosa vermelha! Nunca vi rosa igual em toda a minha vida. É tão linda que tem certamente um nome complicado em latim. E curvou-se para colhê-la.
Depois, pondo o chapéu, correu à casa do professor.
_ Disseste que dançarias comigo se eu te trouxesse uma rosa vermelha
lembrou-se o Estudante – Aqui tens a rosa mais vermelha de todo o mundo. Hás de usá-la hoje à noite sobre o coração, e quando dançarmos juntos, ela te dirá o quanto te amo.
Mas a moça franziu a testa.
_ Talvez não combine bem com o meu vestido
- disse - Ademais, o sobrinho do camareiro mandou-me jóias verdadeiras; e jóias, todos sabem, custam muito mais do que flores...
_ És muito ingrata! – exclamou o Estudante, zangado. E atirou a rosa à sarjeta, onde a roda de um carro a esmagou.
_ Sou ingrata? E o senhor não passa de um grosseirão. E, afinal de contas, quem és? Um simples estudante... Não acredito que tenhas fivelas de prata nos sapatos, como as tem o sobrinho do camareiro... – e a moça levantou-se e entrou em casa.
_ Que coisa imbecil, o Amor! – resmungou o estudante, afastando-se – Nem vale a utilidade da Lógica, porque não prova nada; está sempre prometendo o que não cumpre e fazendo acreditar em mentiras. Nada tem de prático. E como neste século o que vale é a prática, volto à Filosofia e vou estudar Metafísica.
Retornou ao quarto, tirou da estante um livro empoeirado e pôs-se a ler...

Ninguém na trincheira.