20210527

Golden Hair



Lean out your window
Golden hair
I heard you singing
In the midnight air
My book is closed
I read no more
Watching the fire dance
On the floor
I've left my book
I've left my room
I heard you singing
Through the gloom
Singing and singing
A merry air
Lean out of the window
Golden hair

(James Joyce)


P.S.: Amo a versão musicada do Syd Barrett. E é assim que amanheço e anoiteço, entrelaçando artes e tecnologias - bela entropia.

20210509

Sobrenatural




Quando papai faleceu, alguns familiares nos visitaram. Mas minha mente estava tão perturbada, que não consegui ficar por muito tempo entre eles.

Então me sentei em sua cama e permaneci por horas a chorar e a falar com o travesseiro onde ele se deitava, juntamente ao meu também saudoso bichano Cigano.

Passada a animosidade à flor da pele, voltei ao lugar onde todos estavam reunidos, que era a varanda da casa.

De repente, algo me chamou a atenção. Era uma pequena mariposa cambaleante no cimo de ardósia, que separava a aglomeração familiar do quintal. Me mantive o mais distante possível de tudo, ressalte-se.

Passei a fitá-la veementemente, como se os meus olhos pudessem levantá-la de onde eu estava – estática e quase catatônica.

Ela lutava, sim. Caía, se levantava, e isso se repetia infinitamente. Me compadeci com o seu sofrimento, mas não me movi.

Enfim, todos se despediram naquela noite. Eu, por mim, já não aguentava mais toda aquela movimentação. Só pedia a Deus o silêncio.

No dia seguinte, vi a mesma criaturinha a batalhar pela sua sobrevivência. Observei-a com carinho e notei que havia melhorado – mas estava pousada no mesmo local. Ganhando forças.

Ainda estava muito cansada e dolorida por dentro, claro. Apenas queria dormir e mais nada. Mamãe, idem.

Mais um dia se passou e, bem cedinho, me deparei novamente com a mariposinha resiliente. No entanto, ela logo caiu e, acidentalmente, mamãe pisou nela, sem querer, enquanto "conversávamos". Ah... A pequenina ainda tentou, mas sucumbiu – estava morta. Chorei e peguei-a delicadamente para mim.

Semanas depois, mamãe resolveu vender o nosso carro, justamente para se livrar de uma forte memória do papai.

Não demorou muito, e surgiu um comprador – era um amigo do meu cunhado. Assim, ele veio ver o veículo, e fechou-se o negócio.

Acontece que, antes de o carro ser efetivamente levado, Alan havia verificado o que poderia ter lá dentro. Surpreendentemente, ele achou uma grande mariposa dentro do porta-luvas.

Entrei em choque, ligando os momentos da pequena mariposa lutando pela sua vida e a descoberta de que papai já havia guardado outra dentro do carro!

Acredito piamente que, como o meu pai sempre foi misterioso, ele mesmo deixou sinais de que estava "se despedindo" por todos os cantos. Digo isso com propriedade, já que até hoje encontramos coisas escondidas dele pela casa.

E um ano se completa sem ti, papai. E tenho certeza de que estás num lugar muito melhor.

 Saudades eternas.

 Te amo muito!

Fotografia das mariposas - por mim;
Fotografia do Papa e do Cigano - por Maman.

20210505

Papai e Manuelzão

 




Ontem, 04/05/2021, numa espécie de epifania, mamãe havia encontrado essa joia – ela estava a procurá-la faz tempo. Trata-se de um catálogo telefônico cuja capa foi ilustrada pelo meu saudoso pai.

Parece que ele o tinha escondido naquele armário de forma estratégica – papai sempre foi misterioso –, e somente de alguns meses para cá também descobrimos várias de suas obras surpreendentemente inéditas.

Eis Manuel "Manuelzão" Nardi (1904 – 1997), que inspirou João Guimarães Rosa (1908 – 1967) em suas obras Grande Sertão: Veredas (1956) e Corpo de Baile (1956).

Papai sempre demonstrara muito apreço por Manuelzão, e inclusive gravou, pela extinta JMM Publicidade, uma entrevista com o próprio em 1978.

E hoje seria o seu aniversário de 75 anos. Quanta saudade, papai! Teu adeus sideral foi discreto e valente, meu grande amigo! Te amo eternamente.


P.S.: A segunda imagem é a do disco da entrevista com o Manuelzão em formato EP. Eu, desde criancinha, sempre adorei ouvi-lo.

P.S.2: Papai humildemente me pedia dicas de traços, expressões, poses e nomes para as suas obras desde que eu era pequenina. Aprendi muito com ele.

20210308

Psicologia Reversa



Num momento de profunda imersão, de repente passamos a nos questionar.


- Se sonhos não envelhecem, por que é que você pronunciou, como se fosse Deus, que "o sonho acabou"? Você pensa que o matou?

- Mulher, estava tão absorto em mim mesmo, até que, confessando bem, perdi o controle...

- Perdeu o controle de quê? [...] Ei, está se sentindo mal?

- Ah... Desculpe, foi só um lapso de memória [bebericando algo]. Mas, continuando, perdi o controle da minha própria vida pessoal. E quando me percebi superexposto, era tarde demais. Deveras achei interessante a tua questão sobre os sonhos, porque foi a partir daí que a minha perspectiva de vida mudou, claramente. Tentei entrar em estado de plena reclusão junto à minha companheira e até reneguei a amizade para com os meus ex-companheiros de banda. No entanto, tudo virou um inferno.

- Entendi. [...] A fama parece ser traiçoeira. Sonhar te levou a uma visão negativa? Fama e sonhos se cruzam? Me desculpe a invasão...

- De certa forma, creio que sim. Estou cansado, na verdade.

- Pulsão da minha vida: sonhos reais.

- Hmmm...

- Sim. Porque o que seria de mim sem criar expectativas, sem acreditar num Ser Supremo e sem acreditar naquilo que sou? Afinal de contas, somos humanos e...

- Cof! Eu era humano.

- [Contemplando, apenas, uma imagem estática.]


Virei as costas para ele. Num rompante, me senti real (ah, bem calejada!).



Fotografia por Maria Rita - Exposição Aretuza Moura.